ARTIGOS

Planejamento e responsabilidade construindo um mundo melhor

Discurso do Des. Thompson Flores

THOMPSON FLORES
Desembargador

Discurso proferido no TRF4 (16/05/2016)


Senhoras e Senhores:

Reúne-se o Tribunal, em sessão plenária, para dar posse a dois novos membros desta Corte, coroando, assim, brilhantes trajetórias na magistratura federal: os eminentes Juízes Roger Raupp Rios e Salise Monteiro Sanchotene.

A mim me coube, para honra e satisfação minha, saudá-los em nome do Tribunal Regional Federal da 4ª Região.

No decorrer de suas fulgurantes carreiras, Vossas Excelências foram sempre incansáveis distribuidores de Justiça. Agora, chegou a vez de recebê-la, em toda a sua plenitude, com geral satisfação e pleno reconhecimento do meio jurídico.

É que Vossas Excelências, por suas virtudes, por sua cultura, por sua operosidade, por seu alto sentimento de justiça, de há muito se enfileiraram ao lado dos nossos mais completos e ilustrados julgadores.

Ademais, é bom recordar, o acesso na Magistratura, disse-o o saudoso Ministro Rodrigues Alckmin, é um reconhecimento de valores.

Não é, nem pode ser manifestação de simpatia pela consonância de tendências ou idéias; oportunidade em que se retribua a amizade ou se desabafem minúsculas desafeições pessoais; convocação para grupo que vise aos mesmos interesses particulares ou coletivos. Indicar à promoção é julgar do valor do juiz. Como todo julgamento, reclama imparcialidade, e exige o afastamento de critérios outros que não a apuração da excelência do magistrado, pela independência, pela honestidade de vida, pela dedicação ao trabalho, pela ciência do ofício, pelo amor à Justiça. Esses são os elementos que influem e devem influir na promoção dos juízes. Outros, seriam sempre elementos espúrios e falsos, destoantes de uma escolha que é um julgamento e que, como todo o julgamento, há de ser feita de ânimo límpido e intenção reta.

E esse é o motivo pelo qual a indicação de um magistrado à promoção lhe consagra os méritos.

A consagração do valor de Vossas Excelências, que agora enseja o acesso definitivo a este Tribunal, a todos se impunha, à evidência.

Pelo nosso convívio harmônico e afetuoso nos últimos anos, em que Vossas Excelências já se encontravam judicando nesta Corte como juízes convocados, regozijo-me de, em nome do Tribunal, prestar as merecidas homenagens a Vossas Excelências que se incluem entre os espíritos mais bem dotados da Magistratura para as elevadas funções que aqui passarão a exercer.

No exercício da judicatura, os eminentes Juízes Roger Raupp Rios e Salise Monteiro Sanchotene jamais foram meros aplicadores da letra fria da lei, nem se limitaram a compulsar ementários de jurisprudência.

Pelo contrário, os eminentes Magistrados, compreendendo que o Direito, como assinala o notável jurista Henri de Page 1, é uma ciência viva, e, a esse título, ela evolui, e deve evoluir sem apresentar os rigores das ciências exatas, timbraram seus fecundos itinerários na Magistratura com provas incontroversas de penetrar no âmago da lei, subtraindo da norma sua essência de justiça, para conciliar o interesse público com as pretensões privadas das partes.

Já se disse que ao magistrado não basta o mero conhecimento das regras de direito positivo, que essas são, na imagem carnelutiana, simples moedas cunhadas com o ouro da Justiça, tanto mais valiosas quanto mais puro o metal. Com efeito, se o Juiz não tem amor pela função que exerce; se não sente que ao decidir as causas está realizando, ainda que em modestíssimas proporções, um ato daquela grande Justiça que deve restabelecer o equilíbrio social que foi rompido, como queria João Monteiro, poderá ser um correto funcionário, um técnico, ou mesmo um cientista. Falta-lhe, contudo, alguma coisa para ser juiz: ausente está a vocação do justo, e sem essa inclinação não há magistrado.

Nesse momento solene em que o Tribunal empossa dois de seus mais ilustres Juízes, a oportunidade é apropriada para tecer algumas considerações sobre tema de relevante interesse da Justiça.

Reclama-se, de há muito, para que tenhamos um Judiciário apto a atender às exigências de crescimento do país, com a segura e rápida solução dos litígios que lhe são submetidas a julgamento.

Em seu célebre “Testamento Político”, o notável homem público da França, o Cardeal de Richelieu, no século XVIII, assinalara, com inteira propriedade, “que é mais fácil reconhecer os defeitos da justiça do que conseguir-lhes remédio”.

Realmente, tarefa de grande complexidade, as sucessivas tentativas de reforma do Poder Judiciário vêm se operando com dificuldades, sobretudo a partir de 1975, quando o Supremo Tribunal Federal elaborou o seu magnífico “Diagnóstico do Poder Judiciário”, reconhecidamente o mais completo estudo até hoje realizado acerca da Justiça brasileira, e que serviu de fundamento à Reforma Judiciária de 1977.

A respeito, dispunha aquele histórico documento elaborado pelos eminentes Ministros Thompson Flores, Rodrigues Alckmin e Xavier de Albuquerque, em palavras lapidares, verbis:

“Antes do exame das falhas e dificuldades do exercício da função judiciária, há mister considerar a existência de fenômeno mais amplo, com fatores que perturbam o eficiente exercício daquelas funções, fenômeno que é a crise da própria ordem jurídica. Refletem-se no Poder Judiciário e contribuem para o desprestígio dele críticas dirigidas, na verdade, à ordem jurídica interna. Uma das falhas imputadas à Justiça é o retardamento dos processos e a ineficácia da execução dos julgados. A queixa é vetusta e generalizada. Mas qualquer que seja o grau de competência e de dedicação ao ofício dos juízes, sempre lhes terá limites a capacidade de produção. O primário expediente de multiplicação de juízes e tribunais, embora muitas vezes indispensável, encontra óbices na necessidade de um recrutamento em alto nível. Cumpre examinar, consequentemente, as razões dos altos índices de litigiosidade e de criminalidade, que constituem moléstias sociais acarretadoras de sobrecarga aos trabalhos da Justiça e cujas causas devem ser pesquisadas e combatidas (...)
Todos esses fatores, que contribuem para a morosidade ou para a ineficácia na aplicação do Direito, nem podem ser esquecidos, nem se removerão com a só reforma do Poder Judiciário. Estranhos ao âmbito das funções deste Poder, dependerão de estudos e de medidas de outras áreas da atividade estatal. Vale mencioná-los para que se não suponha que simples alterações da organização judiciária e de normas instrumentais serão bastantes para resolver todos os problemas relativos à boa distribuição da Justiça sem medidas outras que as complementem.”

Esse texto foi produzido em 1975 pelo Supremo Tribunal Federal e o seu pensamento conserva grande atualidade no presente momento.

Impõe-se, sem dúvida, vitalizar as estruturas do Poder Judiciário, acima de lirismos ou de preconceitos, a fim de afastar possíveis desajustes entre a magistratura e a sociedade dos nossos dias, sem perder de vista os ditames fundamentais do nosso constitucionalismo.

É preciso, contudo, que se registre que, se até o presente momento não foram efetuadas, com maior amplitude, as reformas necessárias ao bom desempenho das funções judiciárias, compreendendo, inclusive, a modernização de seus serviços, a culpa não deve ser debitada exclusivamente ao Judiciário, que tem cumprido, com as naturais limitações, a sua parte, diagnosticando as falhas da máquina judiciária e apontando as soluções possíveis.

Aos Poderes Executivo e Legislativo, incumbe, portanto, dentro de suas respectivas esferas de atribuição, promoverem a tão ambicionada reforma do Poder Judiciário, o que deve ser objeto de uma reflexão aprofundada e objetiva por parte de todos os setores interessados, resguardando-se sempre os princípios fundamentais desse Poder, constituídos ao longo de nossa história constitucional, notadamente a partir da Constituição de 1891, pois, como advertiu Saint Girons, no já longínquo ano de 1885, “não há quem não deseje uma Justiça esclarecida, imparcial, independente. Poucos, todavia, a têm conseguido – e pela razão muito simples, talvez, de que têm faltado a habilidade e a coragem de outorgar aos magistrados o grande poder de que carecem para o melhor desempenho de suas altas funções”.2

A mais alta missão de que pode o homem ser investido na Terra é a de distribuir justiça. Nada há tão alto, nem tão respeitosamente digno, nem, ao mesmo tempo, tão difícil.

De fato, como adverte Paul Valéry 3, numa sociedade que impõe ao homem a solução de problemas inteiramente novos, jamais sonhados anteriormente, cresce desmesuradamente a responsabilidade do órgão a quem compete a distribuição da justiça.

Julgar, por certo, não constitui um atributo divino, é um ato humano, que exige claro entendimento, um reto proceder, acendrado amor ao trabalho e, sobretudo, elevado respeito às leis e seguro senso de justiça.

Exigem-se dos juízes virtudes especialíssimas, a renúncia e a coragem, o desprezo pela incompreensão e a malícia dos vencidos, e o constante aperfeiçoamento dos seus conhecimentos profissionais. Todo esse conjunto de requisitos, que se não são raros, também não são comuns, formam o lastro indispensável ao exercício da judicatura, valendo lembrar a frase célebre do escritor Anatole France 4, “je ne craindrais pas beaucoup les mauvaises lois si elles étaient appliquées par de bons juges”.

As nações se organizam, criam instituições, submetem-se a regimes políticos, mas somente atingem a perfeição relativa quando os seus tribunais julgam com justiça.

Nesta cerimônia, em que se presta a devida homenagem ao Tribunal Regional Federal da 4ª Região, cultua-se, na realidade, a própria Justiça, que tem sido honrada no Brasil por magistrados ciosos de sua dignidade funcional e da grandeza de sua missão de julgar.

Ao ser batizado por São Remy, perguntou-lhe o Rei Clóvis quanto tempo duraria o Reino da França. A resposta do Bispo de Reims veio breve e pronta: durará enquanto nele imperar a justiça.

O episódio bem ilustra a importância que todos os povos civilizados, desde as épocas mais remotas, sempre atribuíram ao Direito e à Justiça como fatores indispensáveis à harmonia social e à própria existência das comunidades que sem eles não poderiam por muito tempo sobreviver.

No dizer de Carnellutti 5, o primado do Direito deriva não só do seu fim, que á a paz, mas ainda do único meio para atingir o fim, que é a Justiça.

O Tribunal Regional Federal da 4ª Região é uma
Casa de Justiça que honra o Brasil. As decisões proferidas por seus juízes são memoráveis, pela sabedoria que encerram, pelos conhecimentos que revelam, mas, principalmente, pela honra que revestem.

A independência, a autonomia, a altivez, a sabedoria e a firmeza dos pronunciamentos do Poder Judiciário constituem a base do regime democrático.

Nos primórdios do constitucionalismo norte-americano, anotava Hamilton 6, com notável clarividência, que “independence of the judges is equally requisite to guard the Constitution and the rights of individuals the effects of those ill humors, which the arts of designing men, or the influence of particular conjunctures, sometimes disseminate among the people themselves, and which, though they speedily give place to better information, and more deliberate reflection, have a tendency, in the meantime, to occasion dangerous innovations in the government, and serious oppressions of the minor party in the community”.

No Brasil, desde a Constituinte de 1891, que elaborou a primeira Constituição republicana, clama-se pelo aperfeiçoamento do Judiciário, que é condição de sobrevivência dos direitos e das instituições.

No entanto, por maiores que sejam as críticas à Justiça, constitui verdade insofismável que, em um regime democrático, dos três Poderes do Estado é o Judiciário o que mais influência deve exercer, pela oposição aos desmandos ocasionais do Executivo, pela contenção dos excessos do Legislativo e pela proteção dos cidadãos na defesa de seus direitos, não havendo colaboração mais útil e prestimosa à higidez e à estabilidade da democracia do que cimentar, robustecer e consolidar a ordem jurídica, sob cujo pálio nos abrigamos, sendo o juiz o obreiro máximo desse empreendimento, pois, como ensinou Rui Barbosa, “da justiça nasce a confiança, da confiança, a tranqüilidade, da tranqüilidade, o trabalho, do trabalho, a produção, da produção, o crédito, do crédito, a opulência, da opulência a respeitabilidade, a duração, o vigor”.

 

Eminentes Magistrados Roger Raupp Rios e Salise Monteiro Sanchotene:

O homem – diz-nos Thomas Mann 7 – não vive somente a sua vida individual, consciente ou inconscientemente participa também da vida de sua época e dos seus contemporâneos.

Chegam Vossas Excelências a esta Corte em um dos momentos mais conturbados na vida institucional de nosso País.

Buscando a realização do seu real destino, o povo brasileiro realiza um esforço ingente para, após combater as forças da subversão e da corrupção, reestruturar as suas instituições, reafirmando as suas melhores tradições democráticas e cristãs.

E é justamente por essa razão que adquire um significado muito particular a presente solenidade: é que o povo, com a sua intuitiva sabedoria, vislumbra na intangibilidade do Poder Judiciário a certeza de que, apesar da obnubilação momentânea que nos caracteriza, vive e vigora na sua essência fundamental aquela democracia por que sonharam os nossos antepassados, amparada naquele espírito sintetizado na feliz expressão do Justice Hugo Black, “A Constitutional Faith”.

A palavra, pois, deste Tribunal é esta: de satisfação, de confiança, de orgulho com a promoção dos eminentes Desembargadores Federais Roger Raupp Rios e Salise Monteiro Sanchotene que, com os seus elevados dotes de cultura e inteligência, realçarão e dignificarão as altas funções que, a partir de agora, passarão a desempenhar nesta Corte de Justiça.

Muito obrigado

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