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Planejamento e responsabilidade construindo um mundo melhor

VERNÁCULO OU LÍNGUA PORTUGUESA? A NOVA SISTEMÁTICA PROCESSUAL

Alexandre Chini
Juiz de Direito

Marcelo Moraes Caetano
Mestre em Letras-Estudo da Linguagem (PUC-RIO)
PHD em Letras (UERJ).

Este nosso texto cotejará os artigos do Antigo e do Novo Código de Processo Civil que versam sobre a utilização do idioma em que as peças processuais deverão ser redigidas. Procederemos, sempre que necessário, à hermenêutica que propicia o contraste entre os aludidos artigos e outros diplomas do ordenamento jurídico brasileiro que os aquilatem ou prejudiquem.

Consideramo-lo relevante porque, segundo nossas pesquisas, poder-se-iam ter criado problemas de base, até mesmo insolúveis, para os operadores de Justiça com o Código de 1973 no que tange à sua propositura legiferante acerca do meio de expressão reinante nos processos judiciais.

O artigo do revogado Código de Processo Civil que trata da língua em que se deve escrever todos os atos vinha assim redigido:

ARTIGO 156: Em todos os atos e termos do processo é obrigatório o uso do vernáculo. (Antigo CPC, Lei 5869/1973, sublinhamos.)

Este artigo tinha sua complementação e corroboração no artigo seguinte:

ARTIGO 157: Só poderá ser junto aos autos documento em língua estrangeira, quando acompanhado de versão em vernáculo, firmada por tradutor juramentado. (Antigo CPC, Lei 5869/1973, sublinhamos.)

Comparado ao atual Código de Processo Civil, temos a seguinte redação:

ARTIGO 192: Em todos os atos e termos do processo é obrigatório o uso da língua portuguesa.
Parágrafo único: O documento redigido em língua estrangeira somente poderá ser juntado aos autos quando acompanhado de versão para a língua portuguesa tramitada por via diplomática ou pela autoridade central, ou firmada por tradutor juramentado. (Novo CPC, Lei 13.105/2015, grifamos)

Perpassando ambos os artigos aqui comparados, sobreleva-se a vigência da atual Constituição Brasileira:

ARTIGO 13: A língua portuguesa é o idioma oficial da República Federativa do Brasil. (CRFB/1988, sublinhamos.)

E não podemos deixar de remeter à referência do Código Civil que também vige em nosso Ordenamento:

ARTIGO 224: Os documentos redigidos em língua estrangeira serão traduzidos para o português para ter efeitos legais no País. (CC, Lei 10.406/2002, sublinhamos.)

Nossa discussão, portanto, se dará no uso terminológico dos conceitos &ldquovernáculo&rdquo e &ldquolíngua portuguesa&rdquo. Envolverá, também, conceitos de &ldquoidioma oficial&rdquo (inscrito na Constituição Federal de 1988) e seu veículo de expressão, a Gramática Normativa, cujo objeto ulterior é o domínio da norma-padrão do idioma oficial.

Ao que tudo indica, o CPC de 1973, ao usar o conceito de &ldquovernáculo&rdquo, expresso em seu art. 156, tratava-o como sinônimo absoluto de &ldquolíngua portuguesa&rdquo3.

A tradição do senso comum considera que &ldquovernáculo&rdquo é, de fato, o uso da língua na sua modalidade escrita (em que mesmo a língua falada seguiria os moldes estruturais da língua escrita), sob o registro normativo, padrão, culto, formal registro em que todas as peças jurídicas deverão ser redigidas, como pode ser inferido dos Artigos 284 do revogado CPC e 321 do Novo CPC. Verifiquem-se:

ARTIGO 284: Verificando o juiz que a petição inicial não preenche os requisitos exigidos nos arts. 282 e 283, ou que apresenta defeitos e irregularidades capazes de dificultar o julgamento de mérito, determinará que o autor a emende, ou a complete, no prazo de 10 (dez) dias.

Parágrafo único. Se o autor não cumprir a diligência, o juiz indeferirá a petição inicial. (Antigo CPC, Lei 5869/1973, grifamos.)

ARTIGO 321: O juiz, ao verificar que a petição inicial não preenche os requisitos dos arts. 319 e 320 ou que apresenta defeitos e irregularidades capazes de dificultar o julgamento de mérito, determinará que o autor, no prazo de 15 (quinze) dias, a emende ou a complete, indicando com precisão o que deve ser corrigido ou completado.

Parágrafo único. Se o autor não cumprir a diligência, o juiz indeferirá a petição inicial. (Novo CPC, Lei 13.105/2015, grifamos.)

No entanto, essa tradição &minus em que &ldquovernáculo&rdquo encontra sinônimo em língua castiça, formal, padrão &minus, tradição que é por assim dizer consensual, embora consuetudinária, não poderia encontrar guarida sem a reflexão crítica que aqui nos propusemos empreender. Ocorre que o Ordenamento Jurídico brasileiro não é de base oral, costumeira, consuetudinária (embora logicamente essas não sejam fontes desusadas no julgamento), mas encontra fulcro central na chancela positiva, escrita, que requer apuro técnico e crítico elevado em relação aos termos e conceitos que o compõem.

Recorramos, portanto, aos técnicos dos estudos de língua, que, para nos atermos aos mais proeminentes, são os filólogos, os gramáticos, os lexicógrafos e os linguistas. Com base na constatação de alguns desses especialistas, observaremos que a utilização do termo &ldquovernáculo&rdquo, no CPC de 73, como dissemos, poderia ter acarretado sérios problemas à propositura de ações.
Fernando Tarallo, em sua obra A pesquisa Sociolinguística, assim se expressa:

A língua falada. O vernáculo
.... a língua falada a que nos temos referido é o veículo linguístico de comunicação usado em situações naturais de interação social, do tipo face a face. É a língua que usamos em nossos lares ao interagir com os demais membros da família. É a língua usada nos botequins, clubes, parques, rodas de amigos nos corredores e pátios das escolas, longe da tutela dos professores.
....
Em suma, a língua falada é o vernáculo: a enunciação e expressão de fatos, proposições, ideias (o que) sem a preocupação de como enunciá-los. Trata-se, portanto, dos momentos em que o mínimo de atenção é prestado à língua, ao como da enunciação. (TARALLO, 1999: 19, sublinhamos os grifos são originários.)

Eduardo Kenedy, em Curso Básico de línguística gerativa, corrobora-o:

Vernáculo é o conceito usado na linguística para identificar a língua natural e espontânea dos indivíduos, adquirida na infância durante o processo de aquisição da linguagem. O vernáculo é anterior à influência sociocultural padronizante da escola e do letramento, sendo, assim, considerada como a instância mais natural de uma língua. (KENEDY, 2013: 92)

Antonio Houaiss, em O português no Brasil: pequena enciclopédia da cultura brasileira, vai além na discussão, ao propor a distinção entre &ldquolíngua de cultura&rdquo (que podemos igualmente chamar &ldquolíngua de ciência&rdquo) e &ldquolíngua vernácula&rdquo.

Uma língua &ndash qualquer que seja ela, mas, em particular, de cultura &minus, uma língua de cultura é um universo de práticas de comunicação e expressão linguageiras que só se fazem compreender dentro de certos limites de análise, mais ou menos numerosos.
....
A preliminar é que, por ser de cultura, e cultura gráfica, isto é, escrita, é possível escrever dezenas, centenas, milhares, milhões de frases em português que não tem geografia, isto é, que servem para todos os que sabem ler o português, como se fossem eles mesmos os escreventes ..... (HOUAISS, 1988: 10)

O conceito de língua de cultura ou língua de ciência, como se percebe, é atrelado diretamente ao conceito de Gramática Normativa, como se infere do Artigo 321 do Novo CPC, acima exposto. A língua de cultura ou de ciência transcende as fronteiras geográficas de uma nação, como o esboçou Antonio Houaiss, e é, ao mesmo tempo, como o célebre filólogo e lexicógrafo também mostrou (precedido por nós neste texto), basicamente a &ldquolíngua na sua modalidade escrita (em que mesmo a língua falada seguiria os moldes estruturais da língua escrita), sob o registro normativo, padrão, culto, formal&rdquo.

Ao lado desse fato social, relevamos, mais uma vez, que a imprecisão terminológica não pode ser tolerada nas searas científicas, incluindo-se a ciência jurídica, instaurada, em nossos trabalhos (cf. CHINI CAETANO), dentro da Epistemologia como um todo. A imprecisão, em ciências, acarretaria o que abaixo expomos em um de nossos artigos recentemente publicados:

Para lidarmos com ensino de Gramática Normativa, é preciso antes de tudo atravessar-se o que Hugo Schuchardt (1992), um dos pais da Filologia, celebremente alertou representar para o cientista o mesmo perigo que o nevoeiro acarreta para o comandante de um navio: a imprecisão e a despreocupação com o rigor técnico que deveria ser emprestado aos termos com que se quer operar. Assim, para começarmos, os próprios conceitos de &ldquonorma&rdquo e de &ldquogramática&rdquo, básicos à expressão deste texto, apresentam polissemias e imprecisões que dificultam &mdash ou impossibilitam &mdash uma discussão franca entre alunos e professores (e entre professores uns com os outros) que venha a render resultados úteis e merecedores de debate real, ou seja, aquele em que todos saiam ganhando, sobretudo o aluno.
....
Cidadania é conceito que pode ser definido como a relação recíproca entre o Estado e o indivíduo. Bakhtin enfatizou as políticas de ensino como ferramentas indispensáveis à sua consecução. Paulo Freire também o fez.

Uma das necessidades do desenvolvimento das competências intelectivas e emotivas da Gramática Padrão de uma língua reside precisamente no fato de que esse desenvolvimento é sine qua non ao acesso à cidadania plena. Assim, o ensino desta Gramática específica deverá ser levado a termo e tornado possível por meios que levem o aluno, dialeticamente, a pensar o mundo com o auxílio inevitável das linguagens coloquial e padrão, concretizadas na língua. (CAETANO, 2017: 293-296)

Portanto, a Gramática Normativa é o veículo pelo qual o conceito de &ldquoidioma oficial&rdquo, que a CRFB/1988 traz em seu Artigo 13, como mostramos, pode erigir-se. A língua oficial de um País, portanto, para transcender o continuum geográfico a que alude Antonio Houaiss, precisa lastrear-se num código ou ordenamento linguístico que o torne compreensível unitariamente (unidade linguística) por sobre as inúmeras manifestações discursivas que atravessam as práticas dos povos que falem aquela língua (diversidade linguística).

E é justamente a Gramática Normativa, juntamente com o Dicionário, o compêndio que permite que uma língua de cultura ou de ciência seja estruturada de maneira que possa atravessar as diversidades linguísticas para firmar documentos científicos, acadêmicos, historiográficos etc. A inabilidade sobre a Gramática Normativa, portanto, numa língua de cultura ou de ciência, ocasiona a falta de acesso pleno à cidadania do povo que dela se imbui, uma vez que retira da pessoa inábil a possibilidade de ler ou escrever na modalidade da norma-padrão, indispensável à fatura dos documentos oficiais de que se tem falado neste texto.

Cabe ressaltar, aqui, que a Lei 9.099/1995, a Lei dos Juizados Especiais, não abona supostamente o descuro com a norma-padrão do idioma em seu Artigo 14, assim expresso:

Art. 14. O processo instaurar-se-á com a apresentação do pedido, escrito ou oral, à Secretaria do Juizado.
§ 1º Do pedido constarão, de forma simples e em linguagem acessível:
I - o nome, a qualificação e o endereço das partes
II - os fatos e os fundamentos, de forma sucinta
III - o objeto e seu valor. (Lei 9.099/1995, sublinhamos.)

O fato é que, quando o legislador afigura na Lei a expressão &ldquode forma simples e em linguagem acessível&rdquo, sua intenção é permitir a clareza e a objetividade do pedido, a fim de facilitar a resposta do réu4, bem como a compreensão e participação daqueles que não têm conhecimento jurídico5. Esse dispositivo legal, portanto, não deve ser interpretado como permissivo ao uso de linguagem coloquial, informal.

Voltando à distinção entre a língua oficial e a língua vernácula, Antonio Houaiss expõe, agora, o conceito de &ldquovernáculo&rdquo, em contraposição ao conceito que já expusemos do mesmo Autor, quando versava sobre a importância da modalidade escrita &ndash atrelada ao conhecimento de Gramática Normativa &ndash que toda língua de cultura ou de ciência pressupõe. Vejamos:

Sejamos diretos: não escondemos a convicção de que nossa é a língua portuguesa, porque é de quem a fala a partir de seu nascimento &ndash o que é dito como língua vernácula.
....
Na extensão do nosso território, podemos dizer que é uma língua comum, que subsiste como tal para a imensa maioria da população, embora saibamos que é um grande número de minorias linguísticas aqui conviventes. Na prática, podemos dizer que nossa língua aqui considerada é a vernácula &ndash a que se aprende em casa a partir do nascimento &ndash para a grande maioria, havendo minorias que têm vernáculos próprios (e cuja segunda língua é a da maioria). O Brasil apresenta-se, sob tal visão, como uma imensa maioria de unilíngues &ndash pois ou só falam a nossa língua comum ou só falam sua língua indígena &ndash e pequenas (mais ou menos) minorias bilíngues &ndash pois falam o &ldquoseu&rdquo vernáculo e a &ldquonossa&rdquo comum&rdquo. (HOUAISS, 1999: 9-11, sublinhamos os grifos são originários.)

Segundo a interpretação do trecho imediatamente acima, percebe-se claramente que a língua comum (ou oficial) de uma nação não é necessariamente a língua vernácula de todas as comunidades discursivas ou células sociais que perfazem esta nação. Fica claro que, ao lado de termos como língua comum-oficial a língua portuguesa, há vernáculos outros que compõem o mosaico linguístico do Brasil, como as muitas línguas indígenas viventes em nosso território, assim como as línguas vernáculas estrangeiras de imigrantes que hoje vivem sob a cidadania brasileira.

Portanto, se utilizássemos &ldquovernáculo&rdquo como sinônimo irrestrito de &ldquolíngua portuguesa&rdquo no nosso Ordenamento Jurídico, incorreríamos numa possível imprecisão terminológica que poderia abrir azo, por exemplo, a que um habitante do Brasil escrevesse uma peça processual em &ldquosua&rdquo língua vernácula &ndash tanto no sentido levantado pelo sociolinguista Tarallo e pelo linguista Kenedy, como no apontado pelo filólogo Houaiss &minus, uma língua que poderia, explicitando-se, ser distensa, coloquial, informal, bem como estrangeira em relação à língua portuguesa (como as indígenas e a dos imigrantes), mas aprendida de nascença por quem propôs a peça processual em questão.

Para concluirmos, a CRFB/1988 foi bastante precisa ao usar o conceito &ldquolíngua portuguesa&rdquo em seu Artigo 13. A língua portuguesa é uma língua de cultura ou de ciência requer, para tanto, o domínio da Gramática Normativa, gênero discursivo em que a unidade linguística é compendiada sobre as diversidades discursivas tem como padrão a modalidade escrita, no registro formal, escolar, letrado, tenso é a língua comum e a língua oficial do território brasileiro é a língua em que se escrevem documentos oficiais, científicos, de chancelaria, históricos, escolares não pode &ndash e não deve &ndash ser confundida com a imprecisão terminológica que o conceito de &ldquovernáculo&rdquo, timbrado no Código de Processo Civil de 1973, poderia acarretar, com sérios prejuízos, quiçá insolúveis, ao Julgador.

REFERÊNCIAS
CAETANO, Marcelo Moraes. &ldquoMuitas gramáticas, muitas normas: por que ensinar língua padrão&rdquo. Revista Entrepalavras / Universidade Federal do Ceará. Fortaleza, edição 11, v. 6, n. 2. p. 292-306, 2017. < http://www.entrepalavras.ufc.br/revista/index.php/Revista/issue/view/14/showToc> Acesso em 27 de fevereiro de 2017
BORRING, Fellipe Rocha. Manual dos Juizados Especiais Cíveis Estaduais, editora Atlas, 8ª Edição.
FUX, Luiz. Manual dos Juizados Especiais Cíveis, editora Destaque.

HOUAISS, Antonio. O português no Brasil. Pequena enciclopédia da cultura brasileira. 2. Edição, Rio de Janeiro: UNIBRADE, UNESCO, EDUERJ, 1988.
KENEDY, Eduardo. Curso básico em linguística gerativa. São Paulo: Contexto, 2013.
TARALLO, Fernando. A pesquisa sociolinguística. 6. Edição. São Paulo: Editora Ática, 1999.

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